Opinião - 12 de junho de 2024

O agravamento de risco pela embriaguez do condutor do veículo segurado e a cláusula de perda de direitos

Jessyca Fernanda Nascimento dos Santos Os contratos de seguro e consumo de álcool sempre foram questões que levantaram diversas discussões entre seguradora e segurado perante o Poder Judiciário. Seja nos contratos de seguro de vida ou nos contratos de seguro automotivo, há questionamentos sobre a possibilidade de a seguradora negar a cobertura pelo agravamento de […]

Por: Administrador do Site
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Jessyca Fernanda Nascimento dos Santos

Os contratos de seguro e consumo de álcool sempre foram questões que levantaram diversas discussões entre seguradora e segurado perante o Poder Judiciário. Seja nos contratos de seguro de vida ou nos contratos de seguro automotivo, há questionamentos sobre a possibilidade de a seguradora negar a cobertura pelo agravamento de risco do segurado ao ingerir bebida alcoólica e conduzir veículo automotivo, vindo a causar um acidente de trânsito que resulte na morte do segurado ou de terceiros, além de danos materiais.

Nos termos do art. 768 do CC, cabe ao segurado se abster de agravar o risco do contrato de seguro, sob pena de perder o direito do contrato. Portanto, a cláusula de perda de direitos das condições gerais do contrato de seguro (seja de danos ou pessoa) se trata de reprodução do texto legal.

Nesta senda, imperioso demonstrar que a redação do artigo 216, do CTB, é expressa ao vedar qualquer concentração de álcool no sangue do condutor:

Art. 276. Qualquer concentração de álcool por litro de sangue ou por litro de ar alveolar sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165.

Ainda, o CTB prevê tal conduta como crime de trânsito:

Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência: Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

No caso dos contratos de seguro de automóvel, houve uma evolução do entendimento jurisprudencial sobre o tema “embriaguez do condutor do veículo segurado”. Primeiramente, o entendimento era de que a seguradora não poderia negar a cobertura securitária pelo simples fato de o condutor/segurado estar embriagado no momento do acidente, sendo necessário que a seguradora comprovasse o nexo de causalidade do acidente com o estado ébrio do condutor.

Atualmente, o entendimento majoritário é pela presunção de que a embriaguez do condutor teria nexo de causalidade com o acidente, de modo que cabe ao segurado o ônus de comprovar que o acidente em comento teria ocorrido por causa diversa da embriaguez.

O fundamento da jurisprudência sobre o tema – além de se firmar na previsão legal e contratual sobre agravamento de risco, e na tipificação da conduta como crime de trânsito – é no sentido de que o contrato de seguro de automóvel tem como função social a valorização da segurança viária. Ou seja, seria o contrato de seguro um instrumento para proteger a incolumidade pública do trânsito, conforme julgado:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. SEGURO DE AUTOMÓVEL. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. TERCEIRO CONDUTOR (FILHO). AGRAVAMENTO DO RISCO. EFEITOS DO ÁLCOOL. SINISTRO. CAUSA DIRETA OU INDIRETA. PERDA DA GARANTIA SECURITÁRIA. CULPA GRAVE DO SEGURADO. CULPA IN ELIGENDO E CULPA IN VIGILANDO. PRINCÍPIO DO ABSENTEÍSMO. BOA-FÉ OBJETIVA E FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO DE SEGURO.

  1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).
  2. Cinge-se a controvérsia a definir se é devida indenização securitária decorrente de contrato de seguro de automóvel quando o causador do sinistro foi terceiro condutor (filho do segurado) que estava em estado de embriaguez.
  3. O art. 768 do Código Civil dispõe que o segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato.
  4. (…).
  5. O seguro de automóvel não pode servir de estímulo para a assunção de riscos imoderados que, muitas vezes, beiram o abuso de direito, a exemplo da embriaguez ao volante. A função social desse tipo contratual torna-o instrumento de valorização da segurança viária, colocando-o em posição de harmonia com as leis penais e administrativas que criaram ilícitos justamente para proteger a incolumidade pública no trânsito.
  6. O segurado deve se portar como se não houvesse seguro em relação ao interesse segurado (princípio do absenteísmo), isto é, deve abster-se de tudo que possa incrementar, de forma desarrazoada, o risco contratual, sobretudo se confiar o automóvel a outrem, sob pena de haver, no Direito Securitário, salvo-conduto para terceiros que queiram dirigir embriagados, o que feriria a função social do contrato de seguro, por estimular comportamentos danosos à sociedade.
  7. Sob o prisma da boa-fé, é possível concluir que o segurado, quando ingere bebida alcoólica e assume a direção do veículo ou empresta-o a alguém desidioso, que irá, por exemplo, embriagar-se (culpa in eligendo ou in vigilando), frustra a justa expectativa das partes contratantes na execução do seguro, pois rompe-se com os deveres anexos do contrato, como os de fidelidade e de cooperação.
  8. Constatado que o condutor do veículo estava sob influência do álcool (causa direta ou indireta) quando se envolveu em acidente de trânsito – fato esse que compete à seguradora comprovar -, há presunção relativa de que o risco da sinistralidade foi agravado, a ensejar a aplicação da pena do art. 768 do Código Civil. Por outro lado, a indenização securitária deverá ser paga se o segurado demonstrar que o infortúnio ocorreria independentemente do estado de embriaguez (como culpa do outro motorista, falha do próprio automóvel, imperfeições na pista, animal na estrada, entre outros).
  9. Agravo interno não provido*. (grifou-se)

Portanto, o entendimento pacificado da jurisprudência é pela aplicação da cláusula de perda de direitos em caso de embriaguez do condutor do veículo segurado sob à luz da função social do contrato de segurança viária, posto que a sociedade repudia e tipifica a condução de veículo em estado de embriaguez, de modo que o contrato de seguro não poderia estimular tais comportamentos danosos à sociedade.

Por outro lado, tal entendimento é totalmente ignorado nos casos em que o autor da demanda é o terceiro prejudicado (vítima ou seus herdeiros), o réu é o segurado ou condutor do veículo segurado e a seguradora é a denunciada ou corré. Nesses casos, entende a jurisprudência que o contrato de seguro de automóvel não tem apenas o objetivo de proteger o patrimônio do segurado, mas possui também a função social de indenizar a vítima, de modo que a aplicação da cláusula iria penalizar duplamente a vítima, tornando assim ineficaz tal cláusula perante terceiros, conforme julgado:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. SEGURO DE AUTOMÓVEL. GARANTIA DE RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. CONDUTOR DO VEÍCULO. SEGURADO. CAUSA DO SINISTRO. EMBRIAGUEZ. DENUNCIAÇÃO DA LIDE. SEGURADORA. DEVER DE INDENIZAR. CLÁUSULA DE EXCLUSÃO. INEFICÁCIA PARA TERCEIROS. PROTEÇÃO À VÍTIMA. NECESSIDADE. TIPO SECURITÁRIO. FINALIDADE E FUNÇÃO SOCIAL. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. Cuida-se, na origem, de ação de indenização por danos morais e materiais ajuizada em virtude de acidente de trânsito na qual houve denunciação da lide à seguradora. 3. Consiste a controvérsia recursal em definir se é lícita a exclusão da cobertura de responsabilidade civil no seguro de automóvel quando o motorista, causador do dano a terceiro, dirigiu em estado de embriaguez. 4. É lícita, no contrato de seguro de automóvel, a cláusula que prevê a exclusão de cobertura securitária para o acidente de trânsito (sinistro) oriundo da embriaguez do segurado ou de preposto que, alcoolizado, assumiu a direção do veículo. Configuração do agravamento essencial do risco contratado, a afastar a indenização securitária. Precedentes. 5. Deve ser dotada de ineficácia para terceiros (garantia de responsabilidade civil) a cláusula de exclusão da cobertura securitária na hipótese de o acidente de trânsito advir da embriaguez do segurado ou de a quem este confiou a direção do veículo, visto que solução contrária puniria não quem concorreu para a ocorrência do dano, mas as vítimas do sinistro, as quais não contribuíram para o agravamento do risco. 6. A garantia de responsabilidade civil não visa apenas proteger o interesse econômico do segurado relacionado com seu patrimônio, mas, em igual medida, também preservar o interesse dos terceiros prejudicados à indenização. 7. O seguro de responsabilidade civil se transmudou após a edição do Código Civil de 2002, de forma que deixou de ostentar apenas uma obrigação de reembolso de indenizações do segurado para também abrigar uma obrigação de garantia da vítima, prestigiando, assim, a sua função social. 8. Recurso especial não provido** .

Pela análise dos julgados expostos, percebe-se que há uma clara contradição dos fundamentos destes julgados, posto que em um momento afirmam a função social do contrato de seguro como instrumento de segurança viária, com o objetivo de proteger a vida no trânsito, não sendo possível exigir cobertura securitária para casos que configuram crime de trânsito, que do contrário, seria um incentivo à prática criminosa dos condutores de veículos a não aplicação da cláusula, mas, em outro momento, afirmam que o contrato de seguro possui função social de proteger a vítima, de modo que cláusula de perda de direitos não seria eficaz neste cenário, que a aplicação da cláusula seria penalizar a vítima.

Deste modo, considerando a ratio decidendi dos julgados, tem-se que seria a ineficácia da cláusula de perda de direitos contra terceiros um incentivo à prática de crime de trânsito previsto no art. 306 do CTB, criando assim uma sensação de impunidade ao não gerar consequências contratuais ao segurado causador dos danos sofridos pela vítima.

Não obstante, tal entendimento ignora as normas contratuais e legais sobre o tema, obrigando a seguradora a indenizar risco não assumido, por ato ilícito cometido pelo segurado, em razão de uma “função social do contrato” de indenizar a vítima.

Os contratos de seguro são firmados unicamente para proteger o patrimônio do segurado contratante, desde que o mesmo cumpra com seus deveres contratuais haverá o direito aos termos pelos quais se comprometeu a seguradora: indenizar nos limites da apólice.

Todavia, a jurisprudência ignora o próprio entendimento e as normas jurídicas sobre a embriaguez ao volante para que a vítima seja indenizada, ao menos, pela seguradora.

Evidente que é lamentável a situação da pessoa que teve seus bens ou sua vida afetada pela decisão de uma pessoa em conduzir veículo sob efeito de substância alcoólica. Contudo, tal atitude não tem qualquer responsabilidade da seguradora, haja vista que, conforme o próprio entendimento jurisprudencial, o contrato de seguro é um instrumento de segurança viária.

Importante mais uma vez mencionar que, tal dualidade só traz prejuízos aos contratos de seguro veicular, economia, segurança jurídica e segurança viária, posto que, numa situação, protege a vida, dá vigência às leis, repudia a conduta criminosa de condução de veículo em estado de embriaguez. Porém, em outra circunstância, beneficia o praticante da conduta criminosa minorando sua responsabilidade civil ao obrigar as seguradoras a cobrir evento que expressamente se exclui do contrato por se tratar de ato ilícito, crime de trânsito e situação que põe em risco a vida de milhares de pessoas.

Sob outro viés, quanto às coberturas securitárias, a relevância está configurada no seguinte aspecto: ao conceder indenização securitária diversa da prevista no contrato, a dualidade dos precedentes destacados fere o equilíbrio econômico que deve haver na relação entre as seguradoras e o universo geral de segurados, pondo em risco as provisões financeiras que devem ser mantidas por lei pelas seguradoras em segurança da coletividade de clientes, superando assim o mero interesse particular das partes que compõem a lide.

Portanto, o entendimento jurisprudencial pela ineficácia da cláusula de perda de direitos em face de terceiro (vítima) viola diversos direitos, além de beneficiar o segurado que cometeu ato ilícito, protegendo seu patrimônio perante à vítima ofendida, causando-lhe uma sensação de impunidade e possibilidade de se alterar os termos contratuais firmados.

Por esta razão, se faz necessário que tal tema continue a evoluir na jurisprudência, com base nas normas jurídicas e cláusulas contratuais, bem como com um olhar atento para a função social do contrato de seguro veicular de proteção viária. Isto evita que o Judiciário seja mais um fator de incentivo ao ato repudiado pela sociedade: a condução de veículo automotivo sob efeito de álcool.

Referências:

* AgInt no AREsp n. 1.039.613/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 19/10/2020, DJe de 29/10/2020

** REsp n. 1.684.228/SC, relatora Ministra Nancy Andrighi, relator para acórdão Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 27/8/2019, DJe de 5/9/2019

Jessyca Fernanda Nascimento dos Santos é advogada no escritório Rücker Curi – Advocacia e Consultoria Jurídica.

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